sexta-feira, 5 de junho de 2009

Responsabilidade diante da fé


Responsabilidade diante da fé. No horizonte mais amplo da nossa consciência se insere a presença do transcendente, informando um caráter próprio e um sentido maior a todas as outras relações, intrapessoais, interpessoais e cósmicas. Na medida em que reconhecemos que os dons de nosso intelecto têm origem em Deus, seu exercício assume a condição de missão. Na medida em que discernimos a natureza teândrica do nosso agir, onde o divino e o humano co-atuam, percebemo-nos partícipes de um projeto salvífico. Desde essa perspectiva de fé, o uso para o bem de nossos talentos – não os enterrando (cf. Mt 25,14,30) ou os desvirtuando – exprime o último e definitivo nível de responsabilidade:
Se todas as instâncias humanas caducarem ou falharem na sua cobrança e exigência de responsabilidade, permanece sempre Deus como pedra inabalável, rochedo firme.
A presença atuante de Deus em nosso agir não diminui a responsabilidade do ser humano, pois esta não destrói nossa liberdade. Devemos fugir de dois extremos: nem podemos nos abandonar à Graça, nem devemos ter uma concepção prometéica do homem, atribuindo somente à qualidade da ação humana a sua eficácia. Deve, antes, ser o nosso agir um empenho confiado, que mobilize todos os meios humanos à par que mantém a confiança na Providência de Deus. Eis como Santo Inácio de Loyola o formula:
Eis a primeira regra para agir: deposita tua confiança em Deus, como se todo o êxito do trabalho não dependesse de ti, mas apenas de Deus; aplica-te todo inteiro à tua obra, como se Deus não devesse fazer coisa alguma, mas tu devesses tudo fazer sozinho.*

* Segui a fórmula corrigida, por J. de Lapparent, da regra inaciana, conforme adaptação citada e comentada por Libânio.

Responsabilidade em relação ao cosmo


Responsabilidade em relação ao cosmo. O avanço do conhecimento tem dilatado progressivamente o horizonte da nossa consciência, dando dimensão cósmica a nossa responsabilidade. Estágios anteriores de desenvolvimento da ciência e da técnica tanto restringiam a influência de nossas ações como a compreensão dos efeitos delas. Tudo o que se processava no campo da natureza parecia além do controle humano e, portanto, de sua responsabilidade. Não mais nos é permitida essa inocência – sabemos da vulnerabilidade do ambiente às nossas aplicações tecnológicas e dos efeitos perversos sobre os ecossistemas mais remotos e sobre as gerações futuras. Nenhum de nossos atos se conclui em si mesmo, nem no tempo nem no espaço, nem em sua adscrição exclusiva ao natural ou a humano: todo ato é um elo de uma cadeia com efeitos globais, sócio-ambientais, muitas vezes cumulativos e irreversíveis. O que antes entendíamos como caprichos da natureza hoje uma visão lúcida os percebe como efeitos perversos de ações irresponsáveis. Impõe-se, portanto, como nunca antes e de forma urgente, uma consciência ecológica – não mais centrada no ser humano, no seu benefício – mas no da harmonia de todo o sistema ecológico, da grande comunidade da vida. “Quanto mais percebemos o alcance de nosso pensamento e de nosso agir, tanto maior responsabilidade assumimos” . Esse alcance maior do pensamento, esse pensar mais amplo da realidade – essa lucidez – se realiza no vislumbre da densidade de futuro de nossas ações presentes. Os seus opostos são expressões do encurtamento da visão para um presente imediato: o pensamento a-histórico, desligado – e descompromissado – do futuro, a pesquisa que se fecha para a grande realidade, o saber especializado que, de janelas fechadas para as outras dimensões da vida, desconhece os efeitos muitas vezes perversos, nefastos e irresponsáveis sobre a vida humana e a ecologia. Já, assumir a responsabilidade em relação ao cosmo é assumir uma postura ética, entendida como lucidez do conhecer e do agir, como visão ampliada – nos elos geográficos e históricos – das conseqüências do nosso proceder. A compreensão de nós mesmos em relação ao cosmo ultrapassa a intenção preservacionista e adota em relação a este uma postura mais humilde:
Inegavelmente, o ser humano nas sociedades atuais se colocou como o centro de tudo. Tudo deve partir dele e retornar a ele. Tudo deve estar a seu serviço. Sente-se como um Prometeu, capaz de debelar com seu ingênio e força todos os obstáculos que se opõem ao seu propósito. E o seu propósito é o dominium terrae, conquista e dominação da Terra.*
Antes, a atitude co-responsável com o universo implica uma atitude menos agressiva, produto da consciência da dimensão cósmica da nossa relacionalidade:
[O homem] constitui-se como um nó de relações que atingem a totalidade da realidade. O nosso corpo pode universalizar-se: ele se estende até as estrelas, pode entrar em comunhão com todo o universo dos seres. **
O desenvolvimento ético – o espraiar responsável da nossa consciência em escala cósmica e generacional – é ao mesmo tempo fator e produto do nosso desenvolvimento intelectual.

* L. Boff, Dignitas Terrae, p. 110
** L. Boff, O homem como nó de relações, Revista de Cultura Vozes. 65 (1971), 481s

Responsabilidade em relação aos outros


Responsabilidade em relação aos outros. Quando transmitimos informações, transformamos pessoas, para o bem ou para o mal. “Toda relação humana é pedagógica”. Não podemos desconhecer a repercussão nos outros de tudo aquilo que dizemos: o que outras pessoas passam a conhecer a partir de nós atinge sua singularidade, modifica seu sistema de valores e influencia seu agir. Somos, assim, responsáveis por todas as pessoas que entram em contato conosco, diretamente ou através de nossa produção intelectual – tanto se expressa em idéias como em objetos. Do ponto de vista da fé, somos autêntica mediação de graça e pecado para o outro. Nossa verdade interna nos revela nossa natureza social, que nos chama para a convivialidade. Podemos viver essa verdade – fazendo de nossos atos força criadora de comunidade e solidariedade, de bem, verdade e beleza – ou feri-la, instituindo os seus contrários.

É conhecida a crise pela qual passam muitos estudantes ao defrontar-se com professores que lhes destroem as seguranças religiosas, éticas e/ou psicológicas. Nem sempre o intelectual se coloca seriamente a questão do que escreve, leciona, fala, misturando hipóteses com certezas, opiniões frágeis com tradições de maior peso. Não é raro ouvir quem, com uma meia frase sepulta um gênio, como Santo Tomás, sob a campa de “superado”.

Quanto maior a audiência, quanto mais diversificados os espaço de influência, maior é a responsabilidade. Hoje, a globalização cultural e a tecnologia da comunicação dão um alcance mundial a visões e atos particulares, ampliando enormemente o peso da nossa responsabilidade.

Todos sabemos algo, logo todos somos, em algum momento, chamados a desdobrar nos outros seu potencial de crescimento, assumindo-nos como educadores. Deparamo-nos então com a necessidade de escolher um dentre duas atitudes alternativas. Ambas têm, digamos, a mesma legitimidade, por estarem ligadas à raiz etimológica do verbo “educar”, mas expressam posturas diante do educando totalmente diversas. Assim, podemos adotar a raiz “dux”, “chefe, aquele que dirige”, e nos colocar diante do outro como alguém que comanda, conduzindo-o, de forma impositiva e autoritária, em direção a um objetivo previamente selecionado por nós. Mas podemos também, diferentemente, acolher a interpretação etimológica de “educare, educere” que traduz o sentido de “tirar para fora”, “trazer à luz”, descobrindo, desvelando, revelando “as riquezas que o criador já escondeu no coração de todo ser humano” . Aquele é um modelo tradicional, vertical, baseado na submissão do outro. Este é o modelo horizontal, de respeito à singularidade de cada um; modelo socrático, da maiéutica – de quem se põe na posição de ajudar o outro a gerar as possibilidades que já traz dentro de si, gerando experiências vivas de aprendizagem. Através de ambas as posturas pode se assumir a responsabilidade pela formação do outro, mas só esta o acolhe em sua totalidade, dialogando corajosamente com seus modos peculiares de ser.

Responsabilidade diante de si


Responsabilidade diante de si. Construímo-nos por meio de nossas atividades intelectuais. Nosso pensar nos define e configura: “somos o que lemos, somos o que escrevemos, somos o que pesquisamos, somos o que ensinamos.” Na atividade intelectual nos humanizamos ou nos desumanizamos. O que favorece a dignidade nos faz dignos; os previsíveis efeitos perversos do que projetamos nos tornam perversos. Somos aquilo que, pensando, fazemos, criamos, produzimos. Nossa personalidade, nosso eu histórico é auto-criado – eis o homem diante de si; eis a sua auto-responsabilidade.

Responsabilidade


Responsabilidade. Na natureza não há responsabilidade: suas leis se impõem em todos os fenômenos, condicionando-os com rigor determinista em seu desenvolvimento. É em razão desse acontecer cego - dessa ausência de liberdade e de consciência – que o ataque de um animal ou um cataclismo não são responsabilizáveis. A responsabilidade se inicia com o além natureza, no mundo humano, onde o agir resulta de escolhas livres e conscientes no prosseguimento de fins específicos. É a racionalidade livre, adscrita a um fim, que constitui a humanidade de nossos atos. O fim – o objetivo, a motivação, a intenção final – é um valor: sua bondade ou perversidade qualificam a boa ou má natureza das nossas ações e, assim, a qualidade da nossa responsabilidade. Respondemos pelo fim inerente ao que realizamos. Nossa responsabilidade aumenta na proporção que mais percebemos o alcance de nosso agir, vislumbrando as repercussões de futuro e o impacto na natureza e em outros seres humanos. A ética consiste precisamente nesse olhar ampliado, que incorpora aos propósitos do nosso agir todas as suas implicações. Quanto maior é o nosso conhecimento, quanto mais dilatado é o nosso pensar da realidade, quanto mais religados nos sabemos ao futuro e a todas as dimensões da vida, maior é nossa responsabilidade ética. Mas, responsabilidade em relação a quem? Diante de quem temos de responder?

Postura dialética diante da tradição


Devemos ter uma postura dialética diante da tradição – posição de síntese entre a tradição e a novidade da experiência, capaz de fazer-nos chegar a novas formas de verdade. Há uma positividade – a ser conservada – e uma negatividade – a ser superada – em toda tradição. A concepção dialética da verdade foge dos pólos da ortodoxia intransigente – que desqualifica o novo apegando-se ao passado, normativo e sacralizado – e do relativismo, em que a tradição é negada, só reconhecendo ao presente o valor de verdade. O cansaço e a irritação diante das novidades são sinais a um tempo de ortodoxia e de atrofiamento e esclerose intelectual. Para a ortodoxia, o novo é estranho, falso, errado. A crítica ao corpo doutrinal recebido do passado é, por definição, herética e motivadora de exclusão. O paradoxo é que a riqueza do passado, posta em camisa-de-força, incapaz de abertura aos sinais do presente, enrijece e tende a definhar. Já, o paradoxo do relativismo é fazer da negação intransigente de qualquer norma, valor ou verdade do passado sua própria ortodoxia, não raro defendida com ferocidade. Assim, tradição e relativismo se irmanam no erro de uma mesma lógica excludente – sim e não, ou tradição transmitida ou experiência presente. Já, contrariamente, numa atitude susceptível de ser também definida como quântica, tradição e novidade podem, conjurando todo exclusivismo, ser pensados ao mesmo tempo, assumindo simultaneamente suas respectivas positividades numa síntese superadora.

Fugir do extremo da equivocidade


Devemos fugir do extremo da equivocidade. Se a univocidade cai no engano de afirmar a identidade entre o ser e o conhecer, abraçando um dogmatismo intransigente, o extremo oposto da equivocidade exprime a atitude de fria indiferença de quem afirma a cesura entre o ser e o conhecer. Quando partimos da postura de que em nosso conhecimento não há nada que mereça confiança, ou até de que este nada tem mesmo a ver com a realidade, nos rendemos ao ceticismo. Parece-nos que diante do espetáculo incômodo e desorientador da profusão de pontos de vista, da diversidade de ideologias divergentes e irreconciliáveis, da multiplicidade de posições em conflito, devemo-nos refugiar na atitude de suspensão total de qualquer juízo. Se tudo depende do arbítrio subjetivo, todos os juízos valem o mesmo e valem nada – em última instância, nenhum valor seguro de verdade poderemos encontrar em qualquer deles. Goza-se assim de uma “tranqüilidade ilusória e mortuária” que condena a priori ao fracasso o que há de mais autêntico, permanente e nobre no homem, que é sua busca apaixonada da verdade. Não deve o homem, ao contrário, alienar-se de si e do mundo, dispensando o valor, mesmo parcial, das mediações da Palavra e da razão analítica no acesso à realidade. Devemos ser mais humildes que a univocidade mas mais confiantes que a cética e estéril equivocidade, não renunciando a convocar nossa potência interpretativa – crítica e, por isso, autocorretiva e superadora de si – no trato com o real.

Fugir do extremo da univocidade: unir a compreensão técnica à teológica


Para o cristão, a questão da univocidade é particularmente complexa. De um lado, defronta-se com a Palavra de Deus revelada como via que deve professar verdadeira de acesso ao real. Por outro lado, a razão analítica, produto de sua inteligência criativa, lhe provê de instrumentais técnicos que lhe iluminam a compreensão das realidades sociais e naturais. A tentação da univocidade simplificadora é a da eliminação de um desses dois pólos, silenciando-o, negando-lhe originalidade e/ou legitimidade, e absolutizando a leitura proporcionada pela outra mediação. Se a Revelação é infalível, as mediações sócio-analíticas podem ser vistas como orgulhoso produto da inteligência atéia. E ao contrário, na medida em que a razão técnica mostra seu poder, a Palavra de Deus pode ser, em sua aplicação ao mundo, vista como alienada e alienante. A univocidade de qualquer uma destas posições é produto da confusão de níveis. Pertence ao instrumental analítico descobrir e explicar os mecanismos em funcionamento. Pertence à Revelação a dimensão de sentido nos dados do real. Sem a compreensão técnica, falhamos na manipulação das coisas e objetos da realidade. Sem a compreensão teológica, que é capaz de reler, sob nova luz, os resultados da razão técnica e inseri-los em horizonte mais amplo – indedutível pela razão porque é fruto do amor de Deus –, ficamos aquém de nossas necessidades e expectativas mais profundas. Nossa atitude, em conseqüência, deve ser a de pensar desde o pressuposto da unidade entre essas duas compreensões, pois se ambas – natureza e Revelação – são palavras de Deus, assumir sua unidualidade será condição e fonte da verdadeira lucidez.

Fugir do extremo da univocidade


Devemos fugir do extremo da univocidade. Teorias são instrumentais que nos possibilitam a análise e compreensão da realidade. O seu domínio nos provoca um sentimento de segurança, a sensação confortável de compreensão de uma série de elementos da realidade. O risco é que “embriagados na própria descoberta” , nos fechemos em posições arrogantes, que impossibilitem toda evolução posterior, adotando inclusive atitudes severas diante de quem possa discordar. Teorias são meios de acesso à realidade. Teorias não são a realidade, e nem meios de possuí-la de forma plena. A realidade é um dado que, bruto, sem interpretação, não existe para nós, não pode ser conhecido. Mas nossas interpretações – porque baseadas em instrumentos de análise irremediavelmente insuficientes – são sempre aproximativas, nunca decodificações perfeitas. É ilusão que devemos evitar, por isso, a de supor que nosso conhecimento é idêntico à realidade. Desde que se constituem em mediações sempre limitadas, não podemos depositar nas nossas teorias excessiva confiança, absolutizando-as hipostasiando-as, eternalizando-as – o que nos levaria a cair num dogmatismo orgulhoso. Devemos, antes, estar conscientes da força e, também, dos limites de cada instrumental, sabendo que sua riqueza e sua fraqueza coincidem em sua função de desvelar um ângulo, um aspecto do real, deixando outros descobertos. Nenhuma via de acesso à realidade pode ter a pretensão de dominá-la em sua totalidade. Todo instrumental deve, assim, estar aberto à crítica, possibilitando que seja discutido, revisto, corrigido, aperfeiçoado e, quando necessário, substituído por outro que se mostre mais correto na aproximação à realidade. Toda análise – por mais sofisticado que seja o instrumental em que se apóie – deve estar aberta ao diálogo, pois as fraquezas de que não pode fugir exigem sua complementação e correção mediante a participação de outros pontos de vista. “Diz um provérbio latino ‘Timeo hominem unius libri’ – ‘Tenho medo do homem de um só livro’” ; quem procura apoio definitivo num só livro ou quadro de verdades incorre, seja no perigo da segurança absoluta - encarnado na figura da arrogância ignorante, impermeável à aprendizagem – seja no da insegurança, no da convicção frágil – representado por todos aqueles quem balançam em suas crenças diante de todo ataque ou de cada novidade que parece contradizê-las.

Assumir a incerteza


Devemos assumir a incerteza. Temos de aprender a pensar aceitando que vivemos num mundo onde predomina o incerto, o variável, o aleatório, o imprevisível e indeterminado. Os antigos buscavam certezas, verdades universais e eternas, e as recebiam e impunham por meio de dogmas e formulações metafísicas. Na modernidade, a ciência tomou-lhe o relevo à filosofia e à teologia na pretensão de estabelecer verdades definitivas e irrefutáveis. A expressão “é científico” chancelava seus postulados com a marca da certeza, negando a possibilidade de se lhes fazer qualquer objeção. Entretanto, surgiriam no campo mesmo da ciência teorias – como a do Caos, na física – que quebram as evidências das relações de causa e efeito: toda causa produz diversos e imprevisíveis efeitos; e, ao mesmo tempo, toda causa é co-causa – cada efeito é resultado de muitas e variáveis causas. Devemos saber pensar e agir aceitando que o mundo não é uma máquina previsível, dominável pela mente humana, mas um “cocktail de ordem e desordem [...] Num universo de ordem pura, não haveria inovação, criação, evolução [...] Do mesmo modo, nenhuma existência seria possível na desordem pura, porque não haveria nenhum elemento de estabilidade para aí basear uma organização”.*

* E. Morin, Introdução ao pensamento complexo, p. 129

Cultivar a arte da distinção


Devemos cultivar a arte da distinção. Afirmações que parecem contraditórias o são, muitas vezes, apenas aparentemente, podendo ser conciliadas. Os antigos diziam: in distinctione salus, “na distinção está a solução (salvação)” e “onde houver uma contradição, faça uma distinção”. Para isso é necessário perceber a polissemia dos termos, aprofundar cada uma das afirmações e descobrir e explicitar a verdade própria a cada uma delas. Essa atitude permite um pensamento, porque mais dialógico, mais agudo e capaz de compor a conciliação onde pudesse parecer impossível fazê-lo.

Equiparar pensamento analítico e sintético


Devemos dar a mesma ênfase ao pensamento analítico e ao sintético. A inteligência analítica é sobreestimada na atualidade, privilegiando, na abordagem dos problemas, as operações mentais de separação, divisão, distinção, diferenciação, oposição, ruptura e seleção. O equilíbrio do pensar nos pede complementá-las com operações de síntese – isto é, de união, ligação, conjunção, inclusão, implicação – em busca da percepção das articulações entre as idéias. “A inteligência analítica procura perceber em que uma realidade não é outra. [...] A inteligência sintética tenta recuperar dessas análises os pontos de comunhão, de aproximação. [...] Na análise, um não é o outro. Na síntese, um é o outro, embora sob perspectivas diferentes”.

Superar a postura dualista


O pensamento complexo, o saber relacionar, nos leva a superar a postura dualista, que faz escolha exclusiva por um dos pólos da realidade, desprezando ou negando o outro. A postura dualista vê o mundo dividido entre sujeito e objeto, matéria e espírito,
natureza e cultura, razão e emoção, mente e corpo, masculino e feminino, imanência e transcendência, ação e contemplação, etc. Impõe-se, no entanto, relacionar esses pólos, encontrar as articulações, integrá-los, religá-los numa visão ecológica da realidade, em que tudo guarda relação com tudo o que existe – “tudo o que existe, coexiste”*. Trata-se de um paradigma dialogal. Aplicado, por exemplo, à tensão entre sujeito e objeto, passa-se a admitir que o sujeito é marcado, objetivado, pelo objeto. E este, ao ser captado pelo sujeito, é sempre subjetivado, interpretado. Sujeito e objeto não são pólos irremediavelmente separados, como na visão cartesiana, mas estreitamente imbricados na constituição do outro – incompreensíveis, pois, fora dessa relação. Em geral, vencemos a atitude dualista enfrentando o que nos questiona e contradiz. Superamos o enfoque disjuntivo – “ou isto ou aquilo; ou sim ou não – adestrando o pensamento no “jogo dos contrários”. É o método de Abelardo: sic et non – sim e não – que apura as teses a favor e em contra de qualquer afirmação que se quer investigar.


* L. Boff, Ecologia, Mundialização, p. 19


O princípio hologrâmico


O pensamento complexo nos introduz ao princípio hologrâmico, que nos possibilita compreender o aparente paradoxo de que, “não apenas a parte está no todo, como o todo está inscrito na parte”.* Há disto evidência experimental, por exemplo, na aplicação das técnicas de clonagem, por meio das quais um ser vivo pode ser reproduzido a partir de uma só de suas células.

* E. Morin, A cabeça bem-feita, p. 93-97

O ideal da "unitas multiplex"


O pensamento transversal, artífice da visão complexa da realidade, nos aproxima do ideal da “unitas multiplex”* , pelo qual conseguimos perceber a diversidade e heterogeneidade das partes sob o ângulo do todo uno e homogêneo. A atitude mental de associar as idéias de unidade e multiplicidade, em lugar de opô-las, estimula nosso pensar e nos descortina um novo universo de compreensão da realidade.

A perspectiva da unitas multiplex torna plenamente inteligível a simultaneidade destas afirmações aparentemente contraditórias: “o todo é mais que as partes; as partes são mais que o todo”. O todo é mais que as partes pelo fato de que a inter-relação em que estas se encontram produz a emergência de algo novo no todo – “o mosaico é mais que um amontoado de pedrinhas”. As partes são mais que o todo porque este impõe restrições às singularidades daquelas, que passam, para se integrar ao todo, a recalcar virtualidades e valores – “a inteligência de uma comunidade é menor que a soma de todas as inteligências de seus membros”.

* A. Angyal, Foundations for a Science of Personality, Cambridge, Harvard University Press, 1941, apud E. Morin, O método. I. A Natureza da Natureza, p. 102

Pensar de forma transversal


O pensamento complexo opõe-se, desta maneira, ao pensamento produto da superespecialização, fragmentado, desintegrado, composto de elementos dispersos – incapaz por esse motivo de considerar os efeitos dos seus produtos nas outras dimensões da realidade. As aproximações reducionistas próprias do saber hiperespecializado operam mediante recortes artificiais da realidade. Assim, ao focar deliberadamente elementos isolados, ignoram os múltiplos elos com o conjunto, impedindo a visão do global, do contexto, e empobrecendo nossa compreensão da realidade. Pensar corretamente nos exige, assim, superar a compartimentação dos saberes, enfocando cada questão de forma transversal, isto é, mediante a contribuição – em diálogo – de uma multiplicidade de ciências. A transversalidade, ou transdisciplinaridade, supera o pensamento linear – e sua ênfase na organização do real segundo esquemas hierárquicos – mediante a atitude de aprender buscando a articulação, a conexão entre os elementos, detectando as implicações, as solidariedades e interdependências em todos os campos.

Pensar desde a complexidade


Nosso pensamento deve ser complexo, isto é construído na compreensão da teia de relações em que os dados da realidade estão e devem ser situados. Pensar, desde este pressuposto, implica saber relacionar e contextualizar, situando os conhecimentos na sua complexidade – “tudo é complexo, porque tudo faz parte de gigantesco ‘tecido (plexo) com’”. Poderá então o nosso pensar ser holístico, isto é, multidimensional, interdisciplinar, integrativo, contextualizado, organizado, estruturado – sempre situado no todo maior. Tem-se assim um pensamento em rede – tecido numa trama articulada de ações e interações – e sistêmico – em que as partes são compreendidas em sua ligação orgânica com o todo. O pensar complexo não deve ser só capaz de repor cada peça de saber na malha ou estrutura maior de relações (momento sincrônico do conhecimento), como deve igualmente conseguir, assumindo uma perspectiva histórica, de situá-lo no percurso dos acontecimentos (momento diacrônico). "O pensamento não se perde nunca no momentâneo. Em vez de dizer que só existe o presente, afirma-se o contrário. O presente não existe. Ele é passado condensado e é futuro anunciado. Vê-lo sempre assim é aprender a conhecer." Finalmente, para preencher inteiramente os requisitos da complexidade, o pensamento deve ainda compreender e aceitar a incerteza, a indeterminação, o aleatório presente no nosso mundo fenomenal. O acaso faz parte da existência, desafiando a segurança de qualquer uma de nossas previsões.

Evitar as atitudes de submissão


Quando cessa a criticidade, cai-se fatalmente na consciência ingênua, apática, submissa - bovina. Conforme o seu objeto, pode-se fazer a seguinte tipologia das atitudes em que se manifesta a consciência submissa: atitudes de submissão à ordem social, de submissão à autoridade, de submissão ao sobrenatural, de submissão ao círculo ideológico, de submissão à mudança e de submissão ao líder.

Consciência da realidade social


No acesso aos dados da realidade, é, ainda, tarefa do senso crítico a da consciência da realidade social. Ter consciência crítica da realidade social significa entender o mundo humano e a história como produto dinâmico da trama das vontades e liberdades humanas. Opõe-se esta visão às visões fixista e determinista. Na cosmovisão fixista o indivíduo encara a realidade como sendo um conjunto de dados fixos, imutáveis, resultado da ordem natural das coisas. Já, a cosmovisão determinista percebe sim haver história, mudança na realidade, mas, por acreditar na existência de leis inexoráveis, vê essa evolução como necessária, imposta por essas mesmas leis obscuras, contra as quais só cabe uma atitude de submissão, de aceitação resignada. A conseqüência evidente de ambas cosmovisões – fixista e determinista – é a impossibilidade de se desenvolver o senso crítico – o indivíduo, assim, dobra-se à realidade vigente, caindo na paralisia e na alienação, no desinteresse e no descaso. Ao contrário, a consciência crítica da realidade social – que pode melhor ser denominada de “consciência política” – caracteriza-se por considerar as realidades sociais como lugar e resultado das decisões livres das pessoas, e que, portanto, se julgadas injustas ou inadequadas, tornam-se passíveis de serem mudadas. Uma nova consciência – novos critérios e novos valores – pode mudar as condições impostas pela vontade alheia e engendrar uma nova realidade – a realidade querida, desejada.

Consciência de si


No acesso aos dados da realidade, demanda-se do senso crítico uma tarefa prévia: a consciência de si. Devemos conceder que só vemos esse dados de forma mediata, a partir de significações já possuídas de que nem sempre somos conscientes. Isto é, “não existe uma pura objetividade do dado” – todo dado é lido enquanto é, simultaneamente, interpretado, articulado com conteúdos prévios: pressupostos, interesses, esquemas ideológicos. Fazer presentes a si mesmos, no maior grau possível, esses a priori é condição indispensável de autolucidez. Manter acessa a suspeita sobre si – conhecendo esses condicionamentos, reconhecendo essas fragilidades, sabendo das projeções subjetivas e ilusórias presentes nas nossas evidências de verdade – nos evita incorrer em atitudes arrogantes, fanáticas, autoritárias, integristas, rigidamente ortodoxas, fundamentalistas, e nos coloca em atitude permanente de busca. Conhecermo-nos, nos move ao cuidado e à discrição no diálogo com a realidade, assumindo que nosso conhecimento é sempre interpretação, e, nesta, de forma indistinguível, habitam as fantasias e fantasmas do nosso longínquo inconsciente.

Atitude de inserção e distância


Diante da realidade, o senso crítico nos chama a observar uma dupla atitude de inserção e distância, em movimento dialético. O primeiro momento é o da inserção na realidade – a realidade deve ser captada, apreendida em seus temas, problemas e limitações. O segundo momento exige a postura de distanciamento crítico, e dele se origina a denúncia dessas limitações, contradições e insuficiências. Mas o processo só se completa com um terceiro passo, num movimento de retorno à realidade – o da proposta. Não basta sermos denunciatórios, devemos procurar ser também proposicionais – apontando e aportando idéias alternativas, vias de superação dos problemas, saídas, soluções, projetos, etc.

Completar o trânsito do pensamento


A arte de pensar exige, diante de qualquer realidade, atrever-se a fazer a si próprio três perguntas, buscando completar o trânsito entre os momentos da construção do pensamento, que são também três:
  1. O que diz a realidade? É o momento da objetividade, do esforço de penetração de um conteúdo e da apreensão da sua lógica. É o momento da pergunta pelo que é e da escuta humilde, da assimilação, sem preconceitos nem juízos prévios.

  2. O que me diz a realidade? É o momento da subjetividade, da apropriação do real de maneira nova, original, na construção do próprio pensar. É, por isso, também, o momento da reflexão crítica. Criticar não é rejeitar, senão assimilar com critério próprio, autônomo, escolhendo o melhor – aquilo que é percebido como enriquecedor e plenificante da pessoa. Devem-se levantar objeções e questionamentos, procurando as próprias respostas. Deve-se pensar tão longe quanto possível, tratando de prolongar as idéias e antever as conseqüências teóricas e práticas do nosso pensamento.

  3. O que a realidade me faz dizer? É o momento da intersubjetividade, ou do social: não aprendemos só para nós; a arte de pensar termina num serviço qualificado à comunidade.

Ir às raízes da realidade


Enquanto atitude, o senso crítico representa o esforço de ir às raízes da realidade. Intelectual é aquele que assume a tarefa de intus legere, de ler dentro, ultrapassando a camada superficial do aparente e penetrando na compreensão dos interesses escondidos, das razões por trás das razões, do jogo ideológico, dos motivos inconfessados dos outros. Quebrar a barreira do aparente, do aceito como inquestionável, envolve atravessar um difícil limite – o dos sentidos. Somos espíritos encarnados, espíritos na matéria e no mundo. Conforme já afirmava o clássico adágio escolástico, nihil in intellectu nisi prius in sensibus, nada se faz presente à inteligência sem que tenha antes passado pelos sentidos. Dada esta estrutura do nosso conhecimento, os sentidos exercem forte pressão sobre a inteligência. Efeito desta pressão sensorial é a atitude que dá primazia ao dado primeiro, ao imediato e ao aparente, procurando e se deixando conduzir pelas sensações, o prazer e as emoções fortes, isto é, pela dimensão puramente estética (do grego, aiscesis, sensação) da realidade.

Questionar o óbvio


O que nos move a perguntar? É só quando as seguranças afundam, é apenas quando nossas evidências se vêem confrontadas por novas experiências, que surgem em nós as perguntas. Perguntas vitais são sufocadas pelo que se apresenta como óbvio, no convívio exclusivo com o que nos é afim, familiar – o repetitivo é estéril. As perguntas fundamentais surgem necessariamente da “experiência do diferente, da alteridade, da ruptura da mesmidade”. A crítica é paralisada pelo óbvio. E o óbvio encerra com freqüência um engano. Para desvendá-lo, precisamos desenvolver a atitude de questioná-lo, contrapondo alternativas diferentes que obriguem a rever seu fundamento de verdade.

Fazer perguntas


O “segredo do pensar”: fazer perguntas sobre o próprio pensamento. É levantando problemas, dificuldades, dúvidas, incertezas e suspeitas que nos obrigamos a repensar nosso pensamento, o que nos permite avançar na reflexão. E ao contrário: o pensamento que se detém na aceitação de respostas prontas, feitas, pré-fixadas inibe o desencadeamento do pensar. Por isso, a educação do pensamento envolve o domínio da arte e da aptidão para a problematização, renunciando à segurança cômoda das certezas e questionando convicções e evidências próprias e alheias. Mas não são quaisquer perguntas as que devemos fazer, mas perguntas fundamentais: aquelas com força existencial, as que tocam a condição humana, as que têm conseqüências vitais, as que põem em jogo a vida, o ser, os valores transcendentes. As respostas a estas perguntas é que açulam nossa capacidade de pensar além de nós mesmos, superando as fronteiras do convencional.

Pensar o pensar


Devemos pensar o pensar. Devemos pensar de maneira reflexa. O pensar espontâneo, o da maioria das pessoas, interrompe-se, fixo, no objeto pensado. Apreende conhecimentos, mas detém-se nas aparências, nos lugares-comuns, nos slogans, no óbvio. O pensamento espontâneo, direto, imediato, não volta sobre si mesmo – e esta volta é precisamente o que distingue o pensamento reflexo. Quando o pensamento pensa o próprio pensamento, quando faz dele próprio seu objeto, capta-se de maneira singular, permitindo um juízo de si mesmo e podendo, só então, chegar a distinguir a verdade do erro.

Satisfação das necessidades psíquicas


Satisfação das necessidades psíquicas. As aspirações e desejos humanos convergem na busca da felicidade. As energias psíquicas são reabastecidas – e nossa capacidade de lucidez fortalecida – em experiências de realização e prazer que nos resgatam dos horizontes estreitos dos afazeres cotidianos, mesmo intelectuais, introduzindo-nos em campos diversos: esporte, arte, amizade, literatura, trabalho manual, música, oração, contemplação, militância política, etc. Quanto mais diversificada a gama de satisfações, maior a reposição de energias, mais saudável e equilibrada será a psique. Nisso, a manutenção de boas relações pessoais contribui de forma notável a produzir um estado anímico feliz, leve e descansado.

Satisfação das exigências somáticas


Satisfação das exigências somáticas. Não somos apenas espírito, mas espírito e corpo, pelo que ambos princípios estão sempre empenhados em todas as nossas atividades, aí incluída a atividade intelectual. O corpo está presente no esforço de intelecção, seja colaborando, seja obstaculizando-o. Para que o nosso corpo contribua favoravelmente nas lides da mente, devemos conhecer e satisfazer suas exigências. Duas são as mais importantes: o descanso e o sono. No descanso, merece atenção especial o da vista. Alguns conselhos: evite-se forçá-la, lendo com pouca luz ou letras pequenas demais; dê a ela momentos de repouso, fechando os olhos ou contemplando cenas longínquas. Quanto ao descanso do corpo, vale a seguinte regra geral: “’O descanso se faz pelo oposto’, Cansaço físico pede repouso. Cansaço psíquico pede exercício físico.” Sobretudo à noite, cultivem-se atitudes tranqüilas e repousantes, evitando afetar negativamente o regime do sono que, se não corresponder às reais necessidades, afetará as células do cérebro, arruinará o sistema nervoso e comprometerá o rendimento intelectual.
... a capacidade de atenção e assimilação não suporta longos períodos [...]. Por isso, no máximo depois de duas horas, deve-se fazer pequena pausa, em que se desligue totalmente da atividade intelectual, exercitando então os sentidos externos, tal como olhar tranqüilamente para árvores, plantas, rosas etc. ou ouvir sons próximos e distantes, ou sentir os perfumes da natureza, ou perceber sensitivamente os objetos que tocam, ainda que de leve, o próprio corpo, ou degustar algum sabor. *
Nossa performance neuronal é aumentada ou inibida pelas disposições corporais – a oxigenação do sangue, a boa irrigação cerebral, facilitam o exercício da mente e aumentam nosso desempenho intelectual – mens sana in corpore sano.

* Cf. A. de Mello, Sadhana: um caminho para Deus, São Paulo, Paulinas, 1980; id., 43 Maneiras de orar, São Paulo, Loyola, 7ª. Ed., 2000

Abertura à Transcendência: a abertura radical


A abertura radical: o amor a outro que se esquece de si, amor na fé, exprime-se na atitude de total disponibilidade. O outro que nos questiona torna-se desinstalador, mobilizador, inspirador. Estar “sempre à escuta, à espera de algum sinal maior” conserva a pessoa em permanente situação de crescimento e irradiação de força espiritual.

Abertura à Transcendência: o egoísmo moderado


O egoísmo moderado: um certo amor a si torna o homem moderado, em paz consigo mesmo e mais disposto à atividade intelectual. Manifesta-se esta atitude como cálculo e reserva diante do diferente, em favor da experiência acumulada, renunciando aos impulsos do idealismo. Poupa-se assim o homem de sofrimentos, impactos e desilusões – o que desde um ponto de vista ético, não é condenável –, mas desperdiça para si o aprendizado intelectual que advém do contato com o novedio e o inédito.

Abertura à Transcendência: o egoísmo radical


O egoísmo radical: o fechamento do homem ao outro, evitando já a priori qualquer realidade que o questione, termina por ser um fechamento diante de Deus, do totalmente outro. O fechamento desta janela do nosso ser interfere na atividade intelectual, prejudicando a apreensão da verdade.

Abertura à Transcendência: as três possíveis atitudes


Temos o potencial de nos abrirmos ao outro e ao diferente, não só intelectual e afetivamente, como também em função de um terceiro plano a nos compor enquanto homens – o plano da Transcendência. Desde que somos uma unidade, sua abertura ou fechamento – neste caso não só ao outro, como ao totalmente outro – interfere na nossa compreensão da verdade e, portanto, no nosso rendimento intelectual. Do ponto de vista teologal, cabem três atitudes: o egoísmo radical, o egoísmo moderado e a abertura radical.

Abertura ao novo e ao diferente


O centro da faculdade intelectual é a afetividade. Devemos, em decorrência disso, assumir a construção do nosso eu-livre, de nossa singularidade, abrindo-nos afetivamente ao novo e ao diferente, superando o medo e a angústia inerentes à ruptura da nossa ligação com as realidades conhecidas. A raiz da muitos de nossos fechamentos, de nossa incapacidade de abertura, é puramente afetiva: o medo diante do novo que nos questiona e abala nossas seguranças. Resistimos com argumentos, mas é a autodefesa afetiva que desencadeia o processo lógico. A relação simbiótica com uma realidade impossibilita ao sujeito tomar posição diante dela a partir da sua abertura ao novo, impedindo o processo de individualização pelo qual se constrói a personalidade. A super-identificação com realidades já dadas, motivada pela angústia insuportável diante do novo, nega a própria liberdade e responsabilidade e impossibilita o desenvolvimento da visão intelectual. Ao contrário, alcançamos o desenvolvimento integral de nossas virtualidades “concentrando o mundo no homem [e] dilatando o homem ao mundo”, na expressão de Scheler; isto é, participando de tudo é fazendo do mundo um instrumento da nossa liberdade. “Do mundo” como um todo, e não de entes ou realidades parciais específicas. A liberdade diante de todas as coisas é uma atitude fundamental para o correto discernimento de qualquer realidade. Quanto menos amarras, vínculos emocionais, identificações, compromissos, mais diáfano é o nosso conhecimento. Quando algo nos prende “surge a fetichização, que é a ilusória identificação da parte com o todo, do absoluto com o relativo”.*

* L. Boff, Espiritualidade: dimensão esquecida mas necessária, Vida Pastoral 41, n. 212, 2000

Atitude de diálogo: o limite da tolerância


O consenso sobre os limites da tolerância. Encontramos o terceiro fundamento da tolerância pelo diálogo na atitude decidida de busca, pelo consenso racional, dos limites da tolerância. Pertence ao grupo – e não a um indivíduo, autoritativamente –, pela discussão nutrida de razões convincentes, encontrar os limites de tolerância. O limite da tolerância é a intolerância, assim como o limite do racional é o irracional. Destarte, o dialogo encaminha-se a definir e neutralizar as concepções representativas de intolerância irracional, como as que estão presentes na mentalidade racista, na intransigência religiosa, no individualismo extremado, na apologia da violência, nos exclusivismos culturais e de classe, no fanatismo ideológico e em todo tipo de tribalismos fechados, excludentes e deletérios. A verdadeira tolerância é intransigente com toda idéia que ameaça a capacidade de, pelo diálogo, integrar as diferenças e construir uma convivência pacífica, livre, criativa e harmoniosa. Convém logo salientar que a verdadeira tolerância não deve ser confundida com o fenômeno, muito atual e muito estendido, baseado na preguiça mental, do relativismo indiferentista, o qual, claudicando de antemão da tarefa de buscar verdades consensuais, se desinteressa de qualquer posição.

Atitude de diálogo: o equilíbrio de valor


O equilíbrio de valor. O segundo fundamento do diálogo é o equilíbrio de valor, entre o valor a ser dado a si próprio e aos outros. Reconhecer-se e, simultaneamente, reconhecer os outros evita os extremos, em relação a si, da supervalorização e do complexo de inferioridade, e, em relação aos outros, do endeusamento e da desestima. A atitude lúcida é a que reconhece os valores e as limitações próprias e alheias. Nossa mútua igualdade e independência faz com que, em última instância, devamos apreciar os nossos valores por nós mesmos, e não pela estima ou aceitação dos outros; e que devamos reconhecer os valores dos outros pela verdade intrínseca a eles, e não pela adequação aos nossos interesses ou gostos. Na submissão e na timidez, tanto quanto no domínio, no narcisismo e na superioridade, o diálogo e, com ele, o aprendizado pela troca de diferenças, não prosperam.

Atitude de diálogo: a igualdade racional ontológica


A igualdade racional ontológica. Há uma igualdade fundamental entre os seres humanos – há uma racionalidade comum compartilhando uma mesma aspiração à verdade – que justifica a crença de que esta se impõe por si mesma. Em outras palavras, iniciamos o diálogo em busca da verdade sobre o pressuposto antropológico de que as pessoas se assemelham nisto: em que, na sua radicalidade última são verazes – tentam exprimir e são sensíveis às razões que manifestam a verdade. Há também diferenças entre nós, mas estas pertencem a outro nível que o da igualdade: “a igualdade é fundamental, a diferença se constrói sobre ela” – sobre a base de uma mesma racionalidade orientada à busca da verdade, as diferenças são as oportunidades de enriquecimento que cada um oferece ao outro, e não os motivos de exclusão de quem não é como nós.

Atitude de diálogo: o tríplice fundamento


Diante do pensamento do outro, é indispensável manter uma atitude de tolerância, realizada pelo diálogo. As possibilidades desse diálogo, manifestação de abertura de espírito e verdadeiro antídoto da estreiteza mental, apóiam-se num tríplice fundamento: a igualdade racional ontológica, o equilíbrio de valor e o consenso sobre os limites da tolerância.

Explicitar nossos pressupostos


Devemos explicitar nossos pressupostos – eis um ponto fundamental para a lisura científica. Nenhuma crítica pode se pretender absoluta, se querer baseada em critérios puramente objetivos. Antes, temos de admitir que nossa crítica - de um texto, de uma idéia, de um autor – é certamente baseada em pressupostos, isto é, em pontos de vista previamente assumidos. Declará-los, tornando-os por sua vez passíveis de análise e ulterior crítica, é uma exigência de toda exposição íntegra. Esta declaração pode ser entendida como o exercício de denotar a própria conotação. O aspecto da conotação é o dos elementos subjetivos – ideológicos, religiosos, raciais, culturais – que, imbricados nas nossas análises, fundamentam invariavelmente nossas posições. Não podemos eliminá-los, mas sim declará-los, revelando nossos interesses, nossos objetivos e valores – e é nisso precisamente que consiste a denotação: na sua explicitação e tematização. Objetivar os fundamentos, ainda que não anule o caráter ideológico da análise, aumenta a sua objetividade.

Ater-se ao texto em sua objetividade


Deve-se distinguir entre intenção do autor e intencionalidade do texto. A intenção é subjetiva; a intencionalidade, objetiva. Ao mundo interior, livre e subjetivo, não temos acesso senão quando através da confissão do autor. Às motivações últimas, talvez inconscientes, o próprio autor pode não chegar. Não devemos, em conseqüência, aventurarmo-nos a criticar as intenções subjetivas livres de um autor. Devemos, sim, por isso, nos atermos ao texto na sua objetividade, descobrindo e analisando sua estrutura e movimento, assim como fazendo a hermenêutica dos seus significados, os quais podem, de fato, superar a consciência do autor: podem nem mesmo ter sido por ele previstos.

Fiel reprodução do pensamento alheio


O valor da honestidade manifesta-se também na fiel reprodução do pensamento alheio. Exige distinguir os acréscimos, considerações, interpretações livres de quem cita um autor das idéias deste. A citação não pode impingir um sentido diferente e divergente. Da mesma maneira, é importante distinguir o vulgarizador de uma idéia daquele que a criou – este sim seu verdadeiro autor. A pesquisa da fonte original, nem sempre fácil, nos pode levar a ter de percorrer o rastro histórico de um conceito.

Dar o crédito devido às fontes


A honestidade – expressão que é de uma qualidade do total da personalidade a afetar todas suas relações – tem incidência também no campo estritamente epistemológico. Assim, a ética da atividade intelectual, nos impõe dar o crédito devido às nossas fontes. Devemos nos guardar de, seja por descuido ou por falta de orientação metodológica – incorrer na apropriação do produto intelectual alheio. Uma vertente mais grave desta apropriação existe sob a forma de publicação, no próprio nome, de trabalhos alheios. Mais comum, mas ainda condenável, é não citar os autores que são a fonte de idéias inseridas nos próprios escritos.

Consciência possível


A adequada penetração nas teses de um autor, captando sua lógica interna, nos demanda observar o critério epistemológico da consciência possível: cada contexto histórico impõe condicionamentos que limitam objetivamente o horizonte de conhecimento, pelo que não se pode isolar deste contexto aos que nele viveram, criticando suas proposições a partir da consciência histórica presente. Impõe-se, ao contrário, conhecer bem o contexto de sua gênese pessoal, cultural, sociogeográfica, ideológica para entender a realidade que o limitou e à qual teve de se adaptar. A consciência possível é uma consciência-limite – é o marco intransponível de conhecimento e atitudes de um indivíduo ou uma coletividade num dado momento histórico e cultural.

Conhecer a tese global


Na maneira de se trabalhar o pensamento alheio há também exigências éticas. O estudo das proposições de um autor exige conhecer sua tese global. Uma proposição só é passível de entendimento adequado se considerada dentro do conjunto das idéias do autor. É desonesto isolar idéias para criticá-las e condená-las.

Ir à fonte primária


No estudo de um autor, entrar em contato direto com o seu pensamento deve ser precondição para que nos formemos uma idéia a seu respeito. As fontes secundárias introduzem preconceitos difíceis de identificar. No caminho que se distancia do texto-fonte, passando por fontes de segunda e terceira mão, interpõem-se chavões, lugares-comuns, estereótipos e clichês vulgarizados que são inimigos da sua correta compreensão e interpretação. As mediações podem especialmente desvirtuar nossa compreensão das idéias de um autor quando este se encontra no centro de um debate ideológico. Como já disse alguém, na guerra a primeira vítima é sempre a verdade...

Obs.: os blogs, em sua maioria, desde suas origens, têm caráter fortemente autoral. Por essa razão, parece-me oportuno aproveitar esta postagem para lembrar o leitor de ter sempre em mente o que está declarado no subtítulo deste blog, e que expliquei na sua primeira postagem: o que você lê aqui é o pensamento de J. Libânio. Por isso, minha recomendação más enfática: vá às fontes - não deixe de ter, ler e reler os extraordinários livros de que extraí toda a substância destas postagens. São eles, principalmente:
  • Formação da consciência crítica. 2. Subsídios sócio-analíticos, Rio de Janeiro/Petrópolis, CRB/Vozes, 1985
  • A arte de formar-se, São Paulo, Loyola, 2001
  • Introdução à vida intelectual, São Paulo, Loyola, 2001

Predisposição favorável


O contato com o pensamento alheio, no estudo e na pesquisa, exige uma predisposição favorável,* uma atitude de humildade que busca antes de mais nada entender, antes descobrir a verdade do outro do que rejeitar e condenar. Ao abordar um autor ou um texto, não podemos começar levantando suspeitas ideológicas que nos levem a um pré-julgamento. Devemos, ao contrário, pôr a nós próprios em suspeita, examinando as idéias prévias e os sentimentos que nos vêm de antemão à mente, e suspendendo-os, pondo-os entre parênteses.

* Cf. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 22

Aceitar, para superar, o erro


Mais longe irá na labuta intelectual quem reconheça o direito a equivocar-se. Nossas falhas e nossas imperfeições não devem ser motivo de desânimo e de crise na confiança em nós mesmos. Nossa memória é falha; nosso raciocínio, precário – o erro é, portanto, parte inerente do processo de pesquisa, de produção intelectual e de aprendizado. Mas, longe de questionar nossa capacidade de cognição, devemos confiar aos próprios recursos da mente a identificação e superação do erro. A inteligência é autocorretiva. Na relação com os outros, são essenciais o cuidado da sensibilidade e o respeito ao momento de desenvolvimento e às características pessoais: a atmosfera de tensão – às vezes de terror – produto de atitudes excessivamente rígidas e exigentes, minam a auto-confiança, extinguem o prazer e a motivação da aventura intelectual e paralisam a mente.

Ser virtuosos


As faculdades precisam ser exercitadas para se afinarem.* A faculdade de conhecer a verdade exige de nós uma inclinação por ela, um desejo de praticá-la. Para reconhecer a beleza devemos forjá-la em nosso interior e buscá-la com nossos sentidos. Para entender a bondade – de um objeto, de uma ação, de um argumento – devemos ser virtuosos. O subdesenvolvimento moral perverte o intelecto do ser humano. Já, a atitude ética de aceitação, confiança e compromisso com os valores da consciência – que, em termos teologais tem seu paralelo no espírito de fé, esperança e caridade – afina nosso intelecto e nos prepara para a compreensão da essência da realidade, assim como do seu Mistério.

* Cf. J. Laplace, Exercícios espirituais de 30 dias, São Paulo, Loyola, 1998, p. 36

Valorizar o ser


A verdade sobre os outros e sobre nós mesmos só nos é acessível na medida em que somos capazes de ultrapassar a dimensão do ter, distinguindo e valorizando o ser. O ter é o que se nos agrega; o ser é o que nos constitui. O ter é nossa verdade aparente, nosso disfarce, nossa fachada, nossa ilusão: a exibição de posses materiais e simbólicas – títulos, cargos, dignidades, papéis representados, virtudes auto-declaradas – ocultam dos outros, e talvez de nós mesmos, o que autenticamente somos. Já, a verdade sobre nós se manifesta limpidamente na qualidade das nossas relações – na justiça, lealdade e solidariedade que elas realizam. “Tudo o que somos existe em relação” . Para ser mais, basta “ser” nas relações com as pessoas.

Cultivar a solidão


Cultivar a solidão. A reflexão habita a dimensão do silêncio, da separação. Para penetrar fundo nas questões mais difíceis, fazem-se necessárias a quietude, o recolhimento, a tranqüilidade interior. “Solidão não é isolamento, nem timidez, nem misogenismo ou agorafobia. Também não se trata de narcisismo nem de uma forma sofisticada de narcisismo. É a curtição tranqüila de si diante do mistério radical.”

Atitude de concentração


A atitude de concentração é condição indispensável da penetração e da produção intelectuais. Se estudas, dá-te por inteiro ao estudo. A dispersão deprime nossa capacidade de compreender e apreender. A disciplina pessoal para manter sob controle a busca imediata de prazeres que aliviem a tensão produzida pelo esforço intelectual, nos obriga a uma certa crueldade conosco, conseguida pelo espírito de sacrifício e de renúncia. O cultivo da atenção não é fácil nem imediato; exige mobilizar o melhor de nossas energias interiores. É preciso um tenaz esforço da vontade para evitar distrações alheias ao foco do nosso estudo ou nossa reflexão, controlando a imaginação, afastando desejos, devaneios, aspirações, preocupações, projetos:
Os antigos ensinam: age quod agis. Faze o que fazes. Entrega-te à atividade intelectual do momento, desligando-te de todas as outras obrigações. (...) Não te deixes perturbar por aquilo que ainda deves fazer. “A cada dia basta a sua pena” (Mt 6,34)

Envolver os sentidos


Devemos estimar e desenvolver nossa dimensão sensorial. Os sentidos nos constituem – expandindo-os nos humanizamos. Os sentidos são fonte de verdade – na beleza e harmonia das coisas vemos revelar-se o seu valor. Os sentidos são janelas de prazer – experimentando as delícias simples e naturais do mundo alcançamos o repouso e o equilibro interior. Nada é só sensorial; os sentidos são mais do que os sentidos: não só a beleza e, através dela, a verdade, como também a bondade se manifesta no gozo que nos depara a natureza, corporificação que é de uma realidade transcendente. Como seres espirituais e simbólicos, as maravilhas que sentimos nos desvelam a riqueza de significados escondida nas coisas e nos remetem para a Realidade Fontal que, através delas, nos fala de si. Igualmente, devemos nos precaver contra o desregramento dos sentidos – a exacerbação sensorial anula o prazer e embota nosso intelecto. Tudo em demasia transforma-se em desprazer; sem a disciplina dos sentidos causamos nossa infelicidade. A tirania do prazer submete nosso espírito.

O envolvimento da afetividade


Na reflexão não há só o envolvimento da inteligência, senão que empenha-se a totalidade da pessoa. Devemos, por isso, envolver positivamente a nossa afetividade, fazendo da paixão, do gosto, da alegria e do amor motores importantes da construção do nosso pensamento. Deve se estar, de antemão, alerta contra as patologias da afetividade que, sob a forma de distúrbios emocionais – insegurança, fixações, bloqueios, etc. – podem afetar negativamente a nossa capacidade de intelecção. Mas a verdadeira racionalidade é sempre emocional, afetiva, pelo que os sentimentos não devem ser recalcados, senão, antes, implicados na potencialização das atividades reflexivas. A apatia, a frieza neutra, a abulia incolor, o ceticismo cansado e o aborrecimento, “puxam nosso freio”, nos esgotam e embargam nossa lucidez. Já, inspirações profundas, motivações humanistas e uma dose de idealismo nos facilitam enxergar mais longe. Discernimos melhor quando nos empenhamos com generosidade, energia e motivação por uma causa maior.

Intencionalidade para a práxis


Em todo ato de conhecer deve haver uma intencionalidade para a práxis. Devemos cuidar de que haja sempre uma “articulação entre conhecimento e prática, entre saber e ação, de modo que ambos se alimentem mutuamente. (Devemos criar) a atitude mental de sempre pensar o conhecimento em sua prolongação prática, e a prática em seu caráter cognitivo”. Ao enxergar a mútua repercussão entre o conhecimento e a prática, somos levados a reconhecer que todo trabalho é intelectual. No agir envolvemos e reformulamos nosso conhecimento; no conhecer inovamos criativamente nosso agir. Por isso, o verdadeiro e necessário aprendizado é o da aptidão criativa, imaginativa, transformadora da prática, e não o repetitivo, que vê e copia, reproduzindo o já feito.
Há pois uma espécie de perichorese entre Teoria e Práxis. No que se refere à Teoria, há em primeiro lugar este fato fundamental: que ela possui uma homologia estrutural ou um homomorfismo com a prática... A Práxis, por seu lado, compreendida no sentido largo de toda atividade humana transformadora do mundo, inclui sempre sua teoria, a saber, suas razões, suas motivações, suas finalidades, etc. ... É esta mútua imbricação de uma na outra que permite tanto a Teoria da Práxis quanto a Práxis da Teoria. *
Mais penetrante será nosso estudo quando nele repercutir e dele resultar a experiência prática. Mais rica será nossa ação quando dela e para ela derivarmos as lições do nosso pensar. Deixe-se que a prática nos questione; permita-se que a reflexão atualize nosso operar. Pensa melhor quem pensa em vista da ação. Age melhor quem age em prol da reflexão.


* Cl. Boff, Teologia e Prática. Teologia do político e suas mediações, Petrópolis, Vozes, 1978, pp. 361ss

Senso simbólico


Senso simbólico” – mas poderíamos denominá-lo senso poético, senso sacramental, senso místico, metafórico, subjetivo, contemplativo, perscrutador do mistério e intérprete e gerador dos sentidos e da polissemia das coisas e dos objetos. A linguagem poética permite ultrapassar os limites da racionalidade puramente descritiva e analítica, para a qual toda uma dimensão da realidade – talvez a humanamente mais importante – lhe é inacessível. No nosso mundo tecnificado, os objetos – em sua finalidade produtiva e utilitária, em sua artificialidade descartável – tomam o lugar das coisas. Estas, porque “saídas das mãos de Deus” , nos revelam, por meio da observação e da contemplação, a sabedoria profunda escondida nelas, tornando-se “caminho... sacramento e porta para o encontro com Ele”. Enquanto os objetos nos prendem aos seus aspectos funcionais, produtivos e tecnológicos – tornando-se assim para nós signos unissignificativos – as coisas, se contempladas em sua riqueza simbólica, na inesgotável polissemia de suas relações conosco, abrem-nos, pela contemplação, as portas de nossa intuição criadora. Este belo texto de E. Morin referenda o apelo à necessidade de se apreender o s
entido simbólico maior das coisas através da construção de uma linguagem poética:
O ser humano produz duas linguagens a partir de sua língua: uma, racional, empírica, prática, técnica; outra, simbólica, mítica, mágica. A primeira tende a precisar, denotar, definir, apóia-se sobre a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma expressa. A segunda utiliza mais a conotação, a analogia, a metáfora, esse halo de significações que circunda cada palavra, cada enunciado e que ensaia traduzir a verdade da subjetividade... A cada uma delas correspondem dois estados. O primeiro, também chamado de prosaico, no qual nos esforçamos por percebe, raciocinar, e que é o estado que cobre uma grande parte de nossa vida cotidiana. O segundo estado, que se pode justamente chamar de “estado segundo”, é o estado poético. *
Modificar nossa atitude diante das coisas, apreendendo a contemplá-las em sua riqueza simbólica, nos educa a “não considerar unicamente o mundo das idéias como valor, nobre e digno, de nossa mente humana” . Saber estar à espera de captar o mistério das coisas nos possibilita o acesso ao saber místico, o qual exige que sejamos tocados em primeiro lugar pelos sentidos, dando-nos verdadeiramente conta do que vemos, tocamos e ouvimos.
A Terra é o único caminho que nos pode conduzir ao céu. Não há outro. E a Terra não é uma idéia, um raciocínio, uma abstração ou um conceito. Não é sequer uma lei. É uma coisa [...]. **

* E. Morin, Amor, poesia, sabedoria, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998, pp.35s
** P. Charles, A oração de todas as coisas, São Paulo, Flamboyant, 1962, p.11

Equilibrar topia e utopia


O desafio é, então, equilibrar topia e utopia. A topia nos chama a evitar a atitude mental dos que rejeitam totalmente os valores modernos do método e do procedimento, da eficiência organizativa e produtiva. A utopia, já, nos cura do excesso de rigidez; esta supera-se, não incorrendo no extremo oposto da anomia, mas introduzindo ingredientes criativos e humanos na maneira de se organizar, assim como aceitando o concurso do emocional e do imprevisto.

Ser utópicos e criativos


Mas, ao mesmo tempo, devemos ser utópicos e criativos, e ir para além do que existe; devemos saber que somos “morada da Transcendência” , que somos mais e maiores do que tudo o que nos cerca, que podemos superar-nos e que nada esgota nossas possibilidades. Por isso, também pertence ao humano recusar a realidade em que estamos mergulhados , desbordar os esquemas e aspirar a abrir caminhos novos e surpreendentes. A atitude criativa se realiza no ir sempre além, superando a “passividade diante do pensamento alheio” e avançando em direções diferentes, pelas vias da associação, da inventividade e da imaginação criadora, na elaboração do pensamento próprio.

Cultivar atitudes realistas


Em toda atividade intelectual, faz-se necessário cultivar atitudes realistas. Pois vivemos entre limites e possibilidades, o trabalho intelectual exige conjugar, equilibrando-os, o existente e o possível, agindo a partir das possibilidades limitadas do que existe – ou seja, perseguindo fins sempre consoantes com as condições e meios disponíveis. Inversamente, a atitude perfeccionista revela-se no excesso de expectativas. Ao não reconhecer limitações de tempo e energias, não escolhe prioridades; ao não tolerar diminuições, escolhendo prioridades, é sempre tensa. Ao não admitir falhas, será sempre insatisfeita, frustrada. Um saudável realismo, ao contrário, nos leva sempre a procurar perceber o que é limite e o que é possibilidade e, na consciência dos limites, a desenvolver o máximo de possibilidades.

Ler os grandes pensadores


"Aprende-se a pensar, lendo os grandes pensadores." A literatura, a poesia, o cinema nos possibilita entrar em contato com os maiores gênios, dialogar com suas idéias e experimentar muitas das realidades básicas da condição humana – a morte, a dor, a liberdade, o sofrimento – mergulhando na compreensão do seu mistério e avançando na construção do nosso próprio pensamento. O privilégio de ler nos permite, a partir do contraste com outras vivências, reconhecer e julgar nosso próprio mundo.

Assumir o parto de si


Deve cada um assumir o parto de si, tomando nas próprias mãos a responsabilidade e, sobretudo, a iniciativa pelo próprio desenvolvimento. A verdadeira educação passa pela conquista da arte de formar-se, de assumir o próprio destino, na realização permanente, histórica – isto é, ao longo de toda nossa existência – de um duplo compromisso: o da ampliação das nossas qualidades e o da sua aplicação à transformação e o bem da sociedade. Educar-se exige, pois, tanto conhecer-se como conhecer o outro: conhecer-se para progressivamente nos aproximarmos da perfeição da nossa natureza; conhecer o outro para poder participar da obra coletiva de melhoramento da sociedade.

Querer pensar


“É necessário tomar a decisão de querer pensar” , decisão motivada pela percepção do valor, da importância de tal decisão. Fugindo do utilitarismo, o pensar encontra sua mais genuína motivação no gosto, no prazer da reflexão. Ato humano por excelência, o pensar “nos transporta para horizontes novos, diferentes daqueles em que nossos sentidos nos retêm”.

Afirmar a própria autonomia


A intelectualidade crítica reivindica para si a atitude ousada de pensar com a própria cabeça. Trata-se da descoberta e valorização da subjetividade, afirmando a própria autonomia diante de imposições extrínsecas. Desembaraçado das sujeições da heteronomia, o indivíduo atreve-se a fazer seu o lema de Kant – Aude sapere! “Ousa saber!”. Perante a força da autoridade, a consciência crítica faz a experiência de liberdade, revelando a si como sujeito capaz de forjar as próprias significações.

Compromisso com a verdade


O cultivo da inteligência, no serviço à vocação intelectual, exige um compromisso com a verdade em toda a sua amplitude, em cumprimento da tradição humanista que gira em torno do seu sentido, sua gratuidade e imponência. Tal compromisso com a verdade nos exige um pensar crítico e livre, tanto das amarras fundamentalistas e dogmáticas, próprias das ideologias, como das armadilhas utilitaristas, próprias da inflexão produtiva da ciência empírica moderna.

Ser dom de si aos outros


A vocação intelectual é dom recebido – carisma – mas que, simultaneamente, e como contrapartida da responsabilidade que a gratidão desse dom significa, se realiza em ser dom de si aos outros. Existindo, pois, para o bem da comunidade, o empenho nas lides da inteligência abre, de maneira ímpar, as possibilidades de realização e amadurecimento pleno da personalidade.

Busca incessante da verdade


A mente humana é o último elo de uma evolução. Entregar-se à missão de atuar a inteligência, empregando-se de corpo e alma na busca incessante da verdade, pressupõe a existência de um chamado interior, de uma paixão, uma vocação: a vocação intelectual.

Amar a verdade, a bondade e a beleza


A regra áurea da vida intelectual é esta: amar a verdade, a bondade e a beleza. Entre estes transcendentais há uma perichorese, uma comunhão profunda – eles se interpenetram: “a verdade vem ao encontro dos que a amam. E o amor só existe onde reinam a virtude e a beleza”.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Os valores da inteligência


Pessoas maduras com opiniões pueris. Amplo conhecimento unido a uma evidente consciência ingênua. Alta formação acadêmica em contraste com uma escassa capacidade de penetração intelectual da realidade. É da experiência comum que não são poucas as pessoas com esse perfil. Cabe se perguntar: o que ficou ausente no desenvolvimento de suas faculdades? Qual é o elemento que no progresso da inteligência, no caminho individual de formação intelectual, pôde dar lugar ao paradoxal resultado de que este processo venha a se concluir num aparente sucesso (a obtenção de diplomas, títulos e certificados que dão respaldo legal e social às competências adquiridas) simultâneo a um essencial fracasso – o da criticidade rasteira, manifesta em opiniões superficiais, apressadas, e ainda assim arrogantes, repletas de certeza? Colocando-o em termos mais concretos: por que há tantas pessoas formadas – em todos os ramos do saber – que não pensam bem?
A intuição que deu lugar a este trabalho é a de que o “elemento ausente” deve ser procurado em um a priori de natureza axiológica: faltou o cultivo de valores cuja eficácia é anterior – e é condicionante – do esforço intelectual em si, em quaisquer de suas modalidades: de aprendizado, de pesquisa, de criação ou de disseminação do conhecimento.
A axiologia é a ciência dos valores, e os valores, em sua natureza de objetos de escolha moral, nos situam claramente no campo da ética. Esta disciplina filosófica, em sua parte denominada “especial”, tem explicitamente como um de seus objetivos o de tematizar os chamado “deveres para com a alma”, aqui entendida como intelecto. O dever de instruir-se é, claro, um de seus postulados, amparado na definição tradicional de homem como ser racional, chamado a desenvolver-se em sua plenitude. Na sua condição de ciência prática, a ética vê-se na necessidade de recorrer à análise das atividades humanas a fim de dar o conteúdo mais concreto possível a esses “dever de” com que expressa sua intenção normativa. A atividade humana de que versa este estudo é, precisamente, como se disse, a intelectual, ou cognoscente – ou, de forma mais simples, a do conhecimento. Assim, aquela intuição poderia ser melhor formulada como a da necessidade de dominar e cultivar uma “axiologia do conhecimento”, um conjunto de valores capazes de orientar a atividade intelectual prática, em face de sua própria eficácia.